Nos dias de hoje, cada vez mais dias de hoje,
brincar, inventar brincadeiras, ser criança brincante, divertir simplesmente e
apreender ludicamente o que de melhor a vida pode reservar num futuro de
lembranças coloridas em tempos cinzentos, é um tabu. Se hoje sou um artista de
“sete instrumentos” é porque tive um tempo, na infância, repleto de “nada
fazer” e “tudo criar”. Nas asas da minha imaginação e outras crianças vizinhas,
toda sobra virava um brinquedo de horas. Só aos seis anos vesti um uniforme de
miudinho xadrez: vermelho e branco, e uma parte do meu tempo encontrou novo
rumo na Cartilha Caminho Suave, o da leitura. E então um o outro lado da
fantasia escancarou as portas e eu entrei, pra não mais sair. Naquele tempo não
sabia de creches. As crianças eram criadas soltas em casa, na companhia de
outros irmãos. Só soube da existência dos “depósitos de crianças”, quando
deixei o interior de São Paulo. Era pouco mais que um adolescente.
Nestes últimos dezessete anos (1995/2012),
participando dos mais diversos Projetos Educacionais e Culturais do Paraná,
viajando por todo o interior do estado, continuo encontrando muita gente
triste, inclusive professores. É uma gente tensa que não sabe relaxar para
apreender o que é orientado nas oficinas. Os professores não conseguem deixar
de ser professores, por algumas horas, para brincar de criar brinquedos que se faz brincando (uma
das minhas oficinas). O que uma criança cria em uma hora eu não consigo tirar
de um professor em duas. Enquanto um professor busca a lógica formal a criança
viaja livre pela (i)lógica infantil e com muito mais acertos. Também porque se
um brinquedo ou boneco não sair como imaginou, ela simplesmente o reiventa.
Em Arapongas, ao fim de uma etapa do Projeto Educação Com Ciência (2006), da
Secretaria de Estado da Educação do Paraná, me aconteceu uma coisa
mágica e inesperada na Rodoviária. Enquanto aguardava a hora
de embarcar, na companhia de outros oficineiros, uma das meninas disse que, ao
me ver andando pra cima e pra
baixo, com uma mala cheia de adesivos e
sininhos, ficou curiosa. Descobriu enfim
que eu
criava bonecos com material
reciclável e quando conheceu alguns
deles ficou fascinada. O resto do pessoal
disse que também gostaria de conhecer o trabalho Como
estávamos com tempo, comecei a mostrar os bonecos e fui me
empolgando e contando histórias em que eles atuam e falam sobre
a própria confecção. Quando me dei conta tinha um monte de gente (adultos e crianças) ao redor, prestando atenção
na “festa”. A dona
de um bar disse que
estava dividida entre ouvir
as historias, ver os bonecos
e assistir a novela
na TV. Acredito que, definitivamente, cumpri o meu
propósito de artista.
Estava exatamente onde
o povo estava, livre
e desimpedido, desinibido e pronto para
o que viesse.
Certa manhã, viajando com o Projeto Comboio Cultural (2001/2002), da Secretaria de Estado
da Cultura do Paraná,
que levava em
um ônibus articulado, além de mim,
uma bibliotecária e mais
três artistas
(também contadores
de história), o veículo
foi estacionado ao lado de uma praça,
numa pequena cidade
do interior. Estávamos nos arrumando para começar as apresentações
quando vi uma senhora
com uma garota,
sua filha.
A mulher tinha expressão
de poucos amigos,
pouca conversa,
pouca informação.
A garota vinha
falando que naquele ônibus
(que assim
como em
muitos outros
municípios a população
acreditava ser um
ônibus de assistência
médica) tinha
uma biblioteca e contadores de história. A mãe ficou horrorizada, achava um absurdo, um despropósito um ônibus daquele tamanho carregar artistas contadores
de história para
crianças, quando
poderia estar
sendo utilizado, segundo ela, para algo mais útil. Penso que se soubesse o quê
ou para quê teria dito.
No seu cego ponto
de vista o artista
não deve ir onde o povo
está, a cultura deve continuar
sendo privilégio de quem
mora em
cidade grande
ou na capital,
e ainda que
é perda de tempo
criança ouvir
histórias, que...
De outra vez, um dos contadores de histórias,
que utilizava bonecos
e ao final da narrativa
mostrava para as crianças
como ele
transformava duas latas em um telefone ou uma simples forquilha
de estilingue em
um homem,
ao perguntar se as crianças
conseguiam ver a transformação, uma delas (mais mocinha)
insistia em dizer
que não
e que aquilo
continuava sendo um pedaço
de pau e não
um homem.
Ela não
queria dar asas
à sua imaginação
por ignorância,
falta de infância
ou simplesmente
para enfrentar o artista, como
se quisesse se mostrar superior
em não
sonhar (acreditando que
o faz-de-conta
é coisa de criança),
em não
perder tempo com bonecos, com pedaços de pau que viram homens ou coisas do gênero.
Ela agia como
se nunca tivesse lido ou ouvido Contos de Fadas
ou Histórias
da Carochinha. Para onde
foram os sonhos, as fantasias,
a imaginação, o faz-de-conta?
Noutra ocasião, um o performático contador de histórias
mínimas, com
seu teatro
dentro de caixas
de fósforos, se preparava para começar a
apresentação quando foi interrompido por
um indignado menino (de quatro a cinco
anos). Ele queria aprender a fazer teatro e a sua professora não sabia ensinar -
o que foi confirmado por ela, que se
desculpou dizendo que não tinha a menor idéia de como trabalhar teatro com seus alunos.
Bem, ali poderia
estar um grande ator em formação, ansioso por informações sobre
a arte de representar, já que
manifestava uma precoce vocação que, com certeza, seria interrompida, caso
ele não deixasse aquele
pequeno município
esquecido, para seguir carreira
ou terminar seus estudos
numa cidade maior
ou mesmo
na capital.
Mais à frente, quando
estávamos saindo de mais uma pequena cidade,
perdida no interior do Paraná, onde
fomos cobrir a falta
de um grupo
de teatro, cujo
ônibus tinha
quebrado, um garoto veio
correndo, de longe, em
direção ao veículo, agradecendo espontaneamente por termos ido à sua cidade. Dizia que
aquele seria um
dia que
ele nunca
esqueceria. Isso paga
qualquer sacrifício
enfrentado, na estrada, por artistas
brincantes até com quem não aceita ou gosta de brincadeiras.
Eu sou um Oficineiro Cultural que recicla, antes de
tudo, a vida!
foto: Oficina de Bonecos Animados -
Projeto Biblioteca Viva Itinerante - Londrina-PR